terça-feira, 18 de agosto de 2009

A nossa estória começa!

Naquela manhã, ao acordar com uma enorme dor de cabeça, revi os meus gestos e a agenda diária… A razão deste incómodo físico julgo estar no facto de ter estado a ler até que a madrugada trouxesse o som dos primeiros trabalhadores rurais. Tirei os cobertores para trás e um arrepio percorreu o meu corpo todo, senti que algo de muito grave tivera acontecido. Fiquei imóvel durante uns breves segundos… O mundo parecia mergulhado num silêncio aterrador. O quarto estava escuro. A janela estava trancada, a persiana completamente fechada, um livro caído no meio do tapete.
Lá ao fundo, a porta entreaberta deixava passar uns fracos raios de luz. Tive medo de pousar os pés no chão. Mas fi-lo. O chão estava frio e mais uma vez sentira um arrepio dos pés à cabeça. Os chinelos ainda estavam a uns três passos da cama e naquele momento desejei que estivessem mesmo ali. Levantei-me e aquela sensação levou a que as minhas pernas começassem a tremer. Na minha cabeça havia somente dois pensamentos: ou o Mundo tinha sido destruído lá fora e eu era a única sobrevivente; ou então tudo aquilo que sentia era uma estupidez e o dia era normal como todos os outros. Quis acreditar na segunda opção, ou pelo menos tentei. As minhas pernas permaneciam ali, imóveis, não deixavam o meu corpo tomar qualquer rumo. Pensei de novo que, na pior das hipóteses, teria tido um pesadelo, o que explicava o meu estado de espírito naquele momento e talvez explicasse também aquela dor de cabeça e o incómodo físico. Dei três passos, enfiei os chinelos e segui em direcção à porta. Abri-a com todo o cuidado, pois não tinha a mais pequena noção de que horas eram, e se por acaso ainda fosse de madrugada, não queria acordar o resto da casa, (caso eu não fosse a única a sobreviver ao suposto ataque que destruíra o Mundo) e correr o risco de ser gozada por ter aquelas ideias sobrenaturais.
Assim que pus o primeiro pé no soalho, a madeira estalou e soltou-se um ranger por toda a casa. Se a minha primeira hipótese se confirmasse, naquele momento tinha a certeza, caso fosse a única sobrevivente do suposto ataque, que com aquele estalido com certeza tinha sido descoberta e dentro de breves instantes iriam destruir-me por me ter escondido e ter ousado escapar ao inevitável. Mas não, afinal de contas eu estava apenas a dormir e não conhecia o que se estava a passar lá fora. Fiquei novamente imóvel. Nada disso aconteceu. A porta do quarto dos meus pais escancarou-se e por detrás dela saiu uma figura descalça, com os cabelos desgrenhados e com umas enormes olheiras. Era a minha mãe! Naquele momento um enorme peso saiu de cima de mim. Um tremendo alívio percorreu a minha espinha em menos de dois milésimos. Sentia uma estranha felicidade por ter chegado à conclusão que aquela estúpida ideia de o Mundo ter sido destruído não passara disso, de uma estúpida ideia.
- Carlota, o que estás a fazer a pé a esta hora? – questionou-me ela, esfregando os olhos.
- Ia só beber um copo de água – respondi-lhe tentando disfarçar a estranha felicidade que me invadia.
A cabeça ainda me doía e o meu pescoço parecia que tinha sido apertado. A minha mãe reparou que algo não estava bem comigo.
- O que é que se passa contigo? Estás amarela – disse-me tentando tocar-me na testa.
- Não é nada, devo ter ficado a ler até tarde e adormecido com o pescoço torto!
Arrependi-me no minuto a seguir que lhe dissera isto. A minha mãe estava sempre a chatear-me para não ler à noite, diz-me que, mesmo com o candeeiro aceso, os nossos olhos esforçam-se duas vezes mais que com a luz do dia, o que pode levar a problemas futuros. Enfim tretas…
- Carlota, eu já te disse mil e uma vezes que não quero que leias à noite. Tens tanto tempo durante o dia! Se, em vez de estares a tarde toda à frente do computador, pegasses num livro era bem melhor!
Eu achava a minha mãe uma pessoa extremamente complicada. Para ela ler à noite com a luz de um candeeiro era um problema gravíssimo, no entanto estar a tarde toda à frente de um computador não era um problema assim tão grave, pois apesar de me dizer que era melhor ler de dia que estar no pc, ela via-me todos os dias no teclado e a única coisa que me dizia era: “Isso faz te mal!”
Enfim, esta prosa (ou indicações experientes de alguém mais velho do que eu…) estava a deixar-me sem palavras! Por que razão a minha mãe via aversão à leitura nocturna?!
Resolvi, nesse mesmo instante, pegar no Leão para dar uma volta pelo pinhal de pinheiros mansos.
O Leão corria ágil, mas estava já velho. Receava sempre, que numa destas saídas a dois, o pobre cão tivesse um achaque! Sempre fiel, o Leão sentia quando eu estava menos bem…
Já a sair do portão do pátio da nossa casa, não ouvi os barulhos costumados... Não vi ninguém. Até as janelas do caseiro se defrontavam ainda fechadas. “Mas que raio”, pensei, de onde teria vindo aquele barulho que me fez acordar?!

Tentei ignorar por momentos tudo o que estava a acontecer, pois sentia necessidade de aproveitar aquele momento com o Leão, desfrutar daquela madrugada. Segui rua abaixo até ao pinhal, o Leão acompanhava o meu ritmo, não mais à frente nem mais atrás, sempre ao meu lado. Eu via naquele cão mais que um amigo! Fora-me oferecido pela minha avó nos seus últimos suspiros, ela dizia-me sempre que era a pessoa mais indicada para ficar com ele caso lhe acontecesse alguma coisa. Era o cão mais corajoso, mais forte, mais amigo que alguma vez eu tivera, porém, sabia que já era velho e tinha muito medo de o perder.
Já era possível avistar o pinhal lá ao fundo, enormes e densos arbustos encerravam a entrada. Os pinheiros altos provocavam em mim uma sensação de medo e de ansiedade. Nunca se sabe o que poderia estar por debaixo daquelas altas e esbeltas arvores.
O silêncio começava a ser assustador!
Lembrei-me, sem querer, dos contos de fadas e da simbologia que está por detrás dos bosques. Arrepiei-me só de pensar que encontraria alguém a pedir-me ajuda ou, quem sabe até, um temível lobo hirto de frio à espera de uma merenda quentinha para saciar a sua fome! Que estupidez! Estava, de facto, a delirar!

A delirar, só podia ser, claro! Logo eu, que sou a maior sonhadora deste planeta...

Baixei os olhos, reparando na camisola que trazia. Deu-ma a minha mãe no dia em que fui para o 10º ano. Era confortável e dava-me alguma segurança, não sei explicar porquê. Desse dia guardo uma óptima lembrança - a frase: "atenção, agora começa uma nova etapa na sua vida, faça o favor de ter juízo". Pois...juízo... É algo que não me larga o meu lado direito do cérebro! O esquerdo anda sempre a desafiar-me! será por este motivo que sou impelida a entrar nesta floresta?! Desafiada pelo meu lado esquerdo?!

Decidi-me a entrar. Ouvi o som típico destes locais. Nada a recear. Ops, parece-me ouvir passos. Sim, ouço, directos ao meu percurso.
- Bom dia, menina! O que faz por aqui?
- Bom dia, caro senhor. Venho dar uma volta com o Leão...
- ...o seu cão, presumo!
- Sim, não, sim...agora é meu!
- Olhe, tenha cuidado com o final deste caminho. Com certeza vai encontrar por lá uma velhinha a pedir ajuda. Terá duas opções, terá de optar pela mais justa. Depois perceberá por que motivo a avisei...
- Obrigada. Serei cautelosa, mas...
- Boa sorte! Tenho de seguir!

Bem, agora receio o caminho e este sítio! Todavia, acompanhada deste belo protector, seguirei viagem. Passos e mais passos. O som da minha respiração já se faz notar no meio da minha camisola, que serve de caixa de ressonância ao meu medo, tornando-se numa bela invenção musical! Já a vejo. Afinal o seu aspecto não é voraz, como calculava. Parece-me triste...
- Menina, menina, não siga por este caminho. Diz-se que ele chega a qualquer momento, tenha cuidado...
- Descul...pe..., mas ele quem?
- O carteiro!
- O carteiro?! A senhora fala como se o carteiro fosse temível.
- E é! Todas as semanas espero aquela carta, a que não desejo receber.
- Hum, percebi, a senhora receia o carteiro porque ele trará notícias menos boas.
- Exactamente, menina. Exactamente.
- Então esperemos juntas, aceita? Eu faço-lhe companhia!
Não sei porquê, mas aquela velhinha ecoou confiança. Se não a receei de imediato, agora tinha a certeza que a minha ajuda iria ser fulcral.
- Olhe, menina, olhe o nosso rapaz. Será hoje?
- Ora viva, Srª Dª Mercedes! Como está? Hoje tem companhia!
- Trouxe-a, sr. carteiro?
- Receio que sim, pelo aspecto deste envelope deve ser o que a senhora há tanto espera.
- Meu Deus, eu sabia. Ele está vivo...
- ...ele quem?
- A minha outra metade. Aquele que me levou a alegria e a esperança naquele dia de...
- De?
- Não posso, menina, deixe-me chorar um bocadinho...
- As senhoras desculpem-me, mas eu tenho de seguir viagem, o trabalho segue e o dia ainda é longo!

Fiquei sem saber como reagir frente àquela situação. O carteiro seguiu e a velhinha continuou na sua tristeza, delongando a tortura do desconhecimento total. Foi então que me lembrei de reagir:
- Posso ajudá-la, Sr.ª Dª Mercedes?
- Diga, menina, o que tem em mente?
- Quer vir comigo e tomar um chá? Eu sustento-a com o meu braço e o Leão fará a despistagem das pedras que se nos atravessarem!
- Obrigada, menina, vai-me saber bem. Onde vamos?
- Vamos à Vila, de certo encontraremos a tasquinha do sr. Manuel aberta! A mulher faz um chá maravilhoso.
- Sim, eu sei, já recorri aos  seus serviços há uns tempos. Vamos. Com toda a certeza que me vai fazer bem!

O caminho pareceu-me mais rápido, mesmo desconhecendo aquele percurso. Parecia ter ficado menos racional, não percebo o que se estava a passar comigo. Sou sempre tão prudente. Nunca me dei a desconhecidos. Não sei o que se passa na minha mente, mas sinto conforto na companhia desta senhora, a quem a idade roubou algo.